A maior parte da história do futebol é feita de fintas e golos, mas há gestos raros que nos ficam pregados na memória, e que no nosso imaginário têm mais força do que um drible impossível. Perguntem aos benfiquistas qual o momento mais alto da carreira de Rui Costa e nove em dez não falarão nem de fintas nem de golos, mas das lágrimas que ele soltou nos anos 90 no Estádio da Luz, após ter marcado contra o Benfica ao serviço da Fiorentina. Não há litro de suor nem pontapé de fora da área capaz de competir com aqueles olhos molhados - é por eles que Rui Costa será sempre lembrado.Os adeptos de futebol são uma massa bruta e muitas vezes injusta, mas há instantes raros de comoção; cliques inesperados que podem baralhar os sentimentos e mudar tudo. Pegue-se no jogo entre o Benfica e o Celtic no Estádio da Luz, na semana passada. O que se via das bancadas? Uma primeira parte miserável e um ponta-de-lança caríssimo que, de jogo para jogo, vinha a esgotar a paciência dos adeptos. Bolas a passarem-lhe ao lado, um desperdício de altura, pés ineficazes, lentidão de tartaruga hibernada. Diante do desastre futebolístico, o paraguaio Cardozo começava a ouvir assobios do público, que é daquelas coisas capazes de enregelar os ossos até a um fuzileiro naval.Só que veio a segunda parte e Cardozo transfigurou-se. Cabeçada para uma defesa impossível do guarda-redes adversário. Pontapé furioso que embateu na trave e ia tombando a baliza. Pontapé em jeito que o poste direito sacudiu. Azar, azar, azar. E finalmente, já as luzes do estádio estavam a pensar na cama, Cardozo mata no peito um lançamento milimétrico de Di María e toca a bola para o fundo das redes. Golo! Estádio em delírio e vitória do Benfica por 1-0.Mas qual foi o momento mais alto do jogo? O golo? Não, não o golo. Nada foi mais belo do que o que aconteceu logo após o apito final: o paraguaio Cardozo a cair de joelhos no relvado, cabeça junto às pernas, numa misteriosa ladainha consigo próprio que as câmaras captaram. De que falava ele senão desses instantes de rara grandeza que acontecem nos estádios de futebol, quando a persistência dá enfim frutos e o sofrimento de um avançado sem golos se evapora com um toque subtil na bola. Naquele frágil ajoelhar a massa associativa viu simultaneamente todo o empenho, frustração e alegria de um jogador que demora a impor-se, mas cuja dedicação à camisola não voltará a ser posta em causa. Aquele minuto de oração fez mais pela carreira de Cardozo no Benfica do que um hat trick ao Porto. Tão depressa, não ouvirá assobios. Caído na relva, ele entrou no coração da Luz.
João Miguel Tavares, jornalista, in "Diário de Notícias", 30 de Outubro de 2007
Cardozo ajoelhou-se e a seguir telefonou ao pai. Lindo menino.
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